domingo, 29 de outubro de 2023

A crise entre Israel e os terroristas do Hamas tem origens antigas


 Um dos alicerces que fundam a civilização ocidental é o princípio de causalidade. De fato, a certeza de que todos os fatos e eventos possuem causas (Aristóteles diria, quatro causas) distingue definitivamente dois modos de ver e de se relacionar com o mundo. O ocidente se separa das civilizações míticas justamente pela confiança de que a natureza não é regida por entidades ciumentas e apaixonadas, que a uns castiga e a outros premia, sem razões, mas por princípios impessoais e razoáveis. O ocidente é, em certa medida, governado pelo princípio de causalidade e o surgimento deste modo de ver o mundo configura sua estrutura básica. E mais: na cultura que anima o ocidente, tais causas não apenas constituem o âmago da realidade, mas podem ser perscrutadas, analisadas, replicadas, antecipadas. Eis a essência do que se chama ciência e o que diferencia grandemente o mundo regido pela razão do mundo regido pelos mitos; difere essencialmente o ocidente do oriente.

Ora, a crueldade e a vilania que se podem ver na guerra que o Hamas leva a cabo contra Israel e contra os princípios mais fundamentais da humanidade também possuem causas e desconhecê-las constitui perigo, pois não se pode vencer um inimigo que se desconhece. Mas como afirma o adágio: “só se conhece, de verdade, quando se conhecem as causas”. E uma das causas importantes do extremismo islâmico, do qual o Hamas é só uma de suas expressões, está no século XII.

Já é parte do senso comum afirmar que o modo de vida ocidental está sustentado por três pilares: a fé (ou moral) cristã, o direito romano e a filosofia grega. Os valores que regem a cultura ocidental se relacionam com estes pilares: o amor ao bem, a defesa da justiça e a busca da verdade. O que nem todos sabem ainda é que o ocidente deve muito do que é à cultura árabe. Sim, sem os árabes (e o islã especificamente), um dos pilares do ocidente não existiria. Entender como a influência árabe construiu o ocidente e como eles terminaram por se transformar numa ameaça ao próprio ocidente é capital para defesa dos valores caros à civilização.

A cultura ocidental deve muito do que é ao mundo árabe porque, sem os filósofos islâmicos (sim, já houve filosofia no islamismo), o pilar da filosofia grega jamais teria sido erigido e, sem essa coluna, o ocidente como o conhecemos jamais teria surgido.

Com o intuito de ser influente e forjar as mentes de seus governados (lembre-se que o califado árabe chegou à Europa e tornou-se ameaça concreta aos territórios da Espanha e de Portugal a fins da Idade Média), califados árabes realizaram a tarefa necessária para toda cultura que se pretenda universal: absorver e atualizar a alma grega para seu tempo. Foi então que, entre os séculos X e XIII, diversos filósofos árabes encamparam, com apoio de seus governantes, a tarefa de traduzir para o árabe (e depois para o latim, que era a língua universal da época) as obras dos gregos, especialmente de Aristóteles. Mentes brilhantes como Avicena, Averróis, Avicebron, Algazali, dentre outros, realizaram com sucesso o redescobrimento da filosofia grega para o mundo medieval.

A influência destas traduções foi tão grande que forçou uma resposta dos pensadores cristãos que, pior do que testemunharem o avanço territorial do mundo árabe sobre solo europeu, testemunharam a alma de seus conterrâneos serem cooptadas por interpretações dúbias, quando não francamente erradas, de temas importantes da vida humana, como a liberdade, o livre-arbítrio, o processo de conhecimento, a alma humana, a religião e a divindade. Como resultado da ofensiva árabe sobre a cultura, os cristãos realizaram sua defesa melhorando as traduções dos árabes, quando não produzindo suas próprias traduções, como aconteceu com Santo Tomás de Aquino que, desconhecedor do grego, encomendou de um confrade dominicano, Dom Guilherme de Moerbeke, traduções da obra do Estagirita para compor comentários em defesa de temas tão caros ao cristianismo.

Provocados por Averróis e Avicena, que divulgaram comentários à Metafísica, à Ética a Nicômaco, à Física e causaram um verdadeiro alvoroço no ambiente cultura medievo, autores cristãos produziram seus próprios comentários, o que deu impulso fantástico no modo de compreensão do mundo cristão e construiu o espírito ocidental, solidificando assim o pilar da “filosofia grega”, fundamento do ocidente. Mas como a cultura árabe, anteriormente aberta ao diálogo e ao debate, tornou-se fechada e violenta? A resposta está no mesmo período.

Em razão das interpretações de Averróis do Corão, o filósofo árabe atraiu para si inimigos políticos e religiosos, que viam na filosofia uma mediadora incômoda tanto para os interesses da vida pública como para os intuitos da religião. Em certa medida, a doutrina averroísta afirmava que tanto as asseverações políticas como as determinações religiosas precisam, em última análise, obedecer a princípios racionais, de modo que, praticamente, a filosofia se levantava como mediadora da vida política e da vida religiosa. Tal visão de mundo gerou inimigos ao filósofo árabe, tanto na academia nascente (Algazali é o maior deles), como na política e na religião. Ao fim, tudo resultou no banimento de Averróis ao exílio, aproximadamente em 1195.

Com o rebaixamento da importância da filosofia na cultura (até o seu efetivo banimento, como aconteceu com Averróis), os políticos bem como os religiosos não mais necessitaram justificar racionalmente seus decretos, decisões e dogmas. Sem a filosofia como relevante elemento cultural, não é mais necessário que a vida pública da cultura árabe passe pelo crivo da razão, nem que a religião obedeça a princípios extrínsecos à vontade do religioso. Esse caldo cultural prepara os extremismos que vivemos hoje.

No exílio de Averróis está resumido o espírito que, aos poucos, vai dar forma aos autoritarismos desde então. Pois se o religioso agora pode afirmar contradições sem explicar-se, se agora o político pode exigir absurdos racionais, tudo acontece graças ao banimento da filosofia da vida cultural. De fato, a famosa frase de Luís XIV, “O Estado, sou eu!” – “L'État, c'est moi!”, poderia ser proclamada com propriedade pelo Emir Al-Mansur e por todo político ou religioso que rejeite justificar suas afirmações a princípios racionais.

Eis a mensagem que vem do século XIII e que precisa ser recepcionada por toda pessoa que pretenda servir à civilização, não à barbárie: sem a filosofia, as rédeas da cultura equilibram-se entre o autoritarismo do político e o extremismo do religioso. Quando não se identificam, desgraçadamente, um e outro. É preciso, portanto, resgatar a importância da filosofia como mediadora cultural. Mas engana-se quem imagina que qualquer filosofia faria bem esse papel. É preciso resgatar aquela filosofia que libertou o século XIII dos autoritarismos políticos e religiosos do mundo árabe e que, desde lá, tenta submeter a cultura ocidental.

 

fonte: 2023 Terça Livre | Artigo 220

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